Histórias de Ensino e Formação

Histórias de Ensino e Formação






FINANCIAMENTO

FCT - Fundação para a Ciência e a Tecnologia
(Grant no. PTDC/CED-EDG/1039/2021)
https://doi.org/10.54499/PTDC/CED-EDG/1039/2021




COORDENAÇÃO

Amélia Lopes
Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação, Universidade do Porto
amelia@fpce.up.pt
http://orcid.org/0000-0002-5589-5265

Leanete Thomas Dotta
Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação, Universidade do Porto, Portugal
leanete@fpce.up.pt
https://orcid.org/0000-0002-7676-2680




ESQUIPA

Amândio Braga Santos Graça
Faculdade de Desporto da Universidade do Porto
agraça@fade.up.pt
https://orcid.org/0000-0003-1539-4201

Ana Mouraz
Universidade Aberta
ana.lopes@uab.pt
http://orcid.org/0000-0001-7960-5923

Angélica Monteiro
Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade do Porto
armonteiro@fpce.up.pt
https://orcid.org/0000-0002-1369-3462

Fátima Pereira
Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade do Porto
fpereira@fpce.up.pt
https://orcid.org/0000-0003-1107-7583

Isabel Viana
Universidade do Minho
icviana@ie.uminho.pt
https://orcid.org/0000-0001-6088-8396

José João Almeida
Universidade do Minho
jj@di.uminho.pt
https://orcid.org/0000-0002-0722-2031

Luciana Joana
Centro de Investigação e Intervenção Educativas (CIIE), Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade do Porto
lucianajoana@fpce.up.pt
https://orcid.org/0000-0002-0869-3396

Luís Grosso
Faculdade de Letras da Universidade do Porto
lgrosso@letras.up.pt
https://orcid.org/0000-0002-2370-4436

Maria Assunção Folque
Universidade de Évora
mafm@uevora.pt
https://orcid.org/0000-0001-7883-2438

Margarida Marta
Instituto Politécnico do Porto
mcmarta59@gmail.com
https://orcid.org/0000-0002-0439-6917

Maria João Cardoso De Carvalho
Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro
mjcc@utad.pt
https://orcid.org/0000-0002-6870-849X

Paula Batista
Faculdade de Desporto da Universidade do Porto
paulabatista@fade.up.pt
https://orcid.org/0000-0002-2820-895X

Ricardo Vieira
ESECS | Instituto Politécnico de Leiria
ricardovieira@ipleiria.pt
https://orcid.org/0000-0003-1529-1296

Rita Tavares de Sousa
Centro de Investigação e Intervenção Educativas (CIIE) Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade do Porto
rtsousa@fpce.up.pt
https://orcid.org/0000-0002-0919-4724

Sónia Rodrigues
Faculdade de Letras da Universidade do Porto
srodrigues@reit.up.pt
https://orcid.org/0000-0003-0571-024X
FYT-ID Financiamento
DESIGN
José Lima e Pedro Meireis

PROGRAMAÇÃO
Pedro Meireis

Professores Empenhados

I

Dramatização

Teresa e José

II

O tempo em que eu vivi foi um tempo de construção do profissionalismo dos professores portugueses. Anos e anos, o Estado Novo investiu na desvalorização dos professores como meio de controle e conformismo. O 25 de abril abriu uma porta imensa para a transformação, a democratização, a emancipação e a inovação do ensino. Quando digo emancipação não é só no sentido que hoje lhe damos, aplicado a todas as situações de subordinação. Falo mesmo de classe social, de meios básicos de vida: alimentação, saúde, habitação. Durante 48 anos, milhares e milhares de crianças nunca foram à escola e muitos dos que foram - mesmo na cidade usavam socos, porque não tinham sapatos - eram vítimas de uma violência extrema de alguns professores, e acabavam por abandonar a escola com a escolaridade incompleta para irem trabalhar e evitar o empobrecimento ainda maior dos pais.
Nós professores conhecemos bem o impacto da pobreza na aprendizagem e na felicidade das crianças e dos jovens tão visível nos seus olhos. Muitos de nós, chegamos ao ensino por acaso, ou melhor, por um acaso a que se juntam algumas razões. O 25 de abril abriu um tempo de moratória, de experiência de vida social nova, a que alguns chamam um período de isenção ou de invenção (porque as normas sociais antigas estavam relativamente apagadas e ainda não havia novas). Nós éramos jovens, ficamos encantadas e encantados e envolvemo-nos em manifestações de alegria, em ações de alfabetização nas comissões de moradores ou nas igrejas, na criação de futuros espaços de jardins de infância, enfim...tantas coisas!!! No dia 25 de abril estava em Lisboa à espera do autocarro que me levaria à faculdade quando ouvi dizer que estava a acontecer uma revolução. Já ninguém mais esperou pelo autocarro. Toda a gente e cada vez mais gente se juntava e se dirigia ao centro dos acontecimentos. Nunca vi uma coisa assim: era “terra da fraternidade” mesmo. Parecia que toda a gente se conhecia, todos se
abraçavam, todos davam as mãos.
Eu estudava Gestão de Empresas, mas a partir desse dia a minha vida mudou. Tínhamos a sensação de que era preciso fazer coisas. Muitas escolas precisavam de mais professores e muitos de nós, ainda estudantes, íamos dar aulas (bastava ter 8 cadeiras feitas), quanto mais não fosse para ajudar os nossos pais a pagar os nossos estudos na universidade. Alguns amigos professores foram para o interior, o que aconteceu também com novos médicos que foram para terras do interior com a ideia de promover a saúde e o bem-estar das populações até aí
sem qualquer informação ou formação.
Em duas semanas estava apaixonada por aqueles 30 olhos que me olhavam expectantes. Nem tudo foi cor de rosa, as condições de trabalho eram muitas vezes péssimas para nós e para os alunos. Mas não fui capaz de os deixar, e nunca mais os deixei. Fui colocada em escolas que não existiam, em escolas que não tinham chão, em escolas que não tinham laboratórios nem pavilhões. Escolas em que as crianças, andavam cinco quilómetros por dia, ao vento, à chuva e muitas vezes com neve...e com fome...
Os professores sabem mais do que ninguém como é o nosso país – as boas notícias e as más notícias. Por isso, às vezes, não aguentamos mais. Desistimos... e há muitas maneiras de desistir. Às vezes desistimos, mas continuamos lá, só a fazer de conta.
Aprendi muito sobre a vida e as condições em que muitas crianças e jovens crescem – maus tratos, abandono, abuso sexual, trabalho infantil. Tive mais que uma aluna a sofrer de abuso de familiares (nem todos pobres). Choramos muitas vezes com a impotência que sentimos para melhorar a vida deles. Fizemos das tripas coração... e muitas vezes conseguimos. Mudamos muitos percursos de vida condenados sem a nossa intervenção. Muitos, muitos. Alguns que estão silenciosos até ao dia em que já mais velhos os encontramos e as boas memórias saltam. Outros não, não esquecemos: são arquitetos, empresários, professores, advogados, médicos, enfermeiros, informáticos, porque num certo momento tomamos a opção certa de apostar neles – intelectualmente e afetivamente.
A nossa formação pedagógica foi extremamente importante. Na profissionalização em exercício e nos magistérios primários, a nossa formação foi excelente, aliando saber pedagógico, ênfase no professor como profissional e conhecimento. Lembro-me sobretudo da visão abrangente do trabalho docente (sala de aula; escola e sistema educativo) e das metodologias baseadas no efetivo trabalho de equipa e na criação concetual (muitas vezes associada a pesquisa). Para o meu desenvolvimento profissional foram importantes os meus colegas de curso, de que me mantive amiga e colega; alguns colegas que encontrei nas escolas (sobretudo nos primeiros tempos e colocada longe de casa); a formação que, mesmo antes do sistema de formação contínua, íamos procurando para responder a este ou àquele desafio; a formação adquirida no âmbito de associações profissionais a que pertencemos (como o Movimento da Escola Moderna ou a Associação de Professores de Matemática); o que íamos lendo e conhecendo quando preparávamos as aulas ou nos metíamos num projeto novo; a
formação a que assistimos e que dinamizamos no âmbito dos Centros de Formação e Associação de Escolas; e depois as pós-graduações em ciências da educação (alguns colegas fizeram mestrados e doutoramentos).
Depois de ser profissionalizada fui por alguns anos Presidente do Conselho Diretivo. Diziam que eu tinha jeito e que era a melhor pessoa para a tarefa, e lá fui. Mas voltei a dar aulas depois. Tinha saudades de trabalhar com os miúdos. Gosto de trabalhar com eles e de me envolver em projetos com alunos e com colegas. Entretanto, tinha casado e tinha dois filhos. Não era sempre fácil conciliar o trabalho e a família. Mesmo quando os pais estão presentes, supõe-se que somos nós, as mães, que temos que fazer certas coisas. Só a minha colega Célia foi fazer o mestrado para a Universidade e o marido ficou com os filhos – só conheço este caso deste género.
Nos anos 1990, estava tudo mais estável, mas ao mesmo tempo foi um período de grande criatividade nas escolas. Tivemos experiências curriculares extraordinárias (nomeadamente no âmbito da área escola e do projeto de escola) que alteraram efetivamente as relações de ensino e de educação e envolveram todos os professores e a comunidade. Foi também durante os anos 1990 que começaram as visitas de estudo ao estrangeiro, permitindo a muitos jovens o contacto com outras realidades e formas culturais; criaram-se diversos clubes e vieram depois os projetos europeus e nacionais.
Ao longo do tempo em que demos aulas algumas políticas e projetos, para além dos já referidos, foram mais marcantes (falo por mim e por outras professoras que conheço de todos os níveis de ensino): a avaliação formativa nos anos 1980; o projeto Minerva e a introdução dos computadores; o projeto Ensinar é Investigar; o PIPSE, o projeto Escola para Todos; as Bibliotecas Escolares, o Plano Nacional de Leitura, da Matemática, projetos de Educação para a Saúde, entre outros.
Estes projetos e políticas foram muito importantes, porque abriram possibilidades, mas temos que sublinhar a importância do nosso conhecimento profissional: pedagógico, de conteúdo, pedagógico de conteúdo, dos alunos, do currículo, etc., que efetivamente empoderou a nossa capacidade de agência individual e coletiva. É como se as escolas de pensamento, as correntes, os modelos, os autores, as técnicas (construtivismo; didática francesa; estruturalismo russo; Vigotsky, Piaget, Freire, Edgar Morin, Nunziati, Perrenoud) tivessem sido o terreno fértil que deu energia e sentido a tudo o resto e alimentou a nossa resiliência.
Este conhecimento nutriu decisivamente os nossos valores pedagógicos e as nossas competências de ensino. Valorizamos os alunos e o seu sucesso e crescimento; valorizamos o trabalho com colegas; emocionámo-nos com o afeto dos pais, valorizamos o humor do professor e a possibilidade de "mudar o mundo através da profissão".
O que mais nos motiva e engrandece é os alunos aprenderem connosco, ver a evolução deles connosco (sobretudo os que têm mais dificuldades), fazer com eles um trabalho pedagógico eficaz que não é tradicional (trabalho de projeto, trabalho no exterior). É uma questão de direitos e de justiça social - proporcionar a muitos alunos o que não poderiam ter de outra forma.
Somos resilientes, otimistas, dinâmicas, carinhosas, irreverentes e criativas. Somos capazes de gerir o comportamento dos alunos e de atingir com eles os objetivos académicos e formativos; temos que ter competências de relação interpessoal (com alunos e colegas) e conseguir tirar partido da formação. Há quem faça formação e não tire partido da formação.
Privilegiamos processos de acesso ao conhecimento através de uma relação pedagógica exigente, mas amigável, centrada no conhecimento inovador e interdisciplinar, e na inclusão; defendemos que o professor é um investigador: identificando obstáculos e descobrindo formas de os ultrapassar, ou seja, desenvolvendo ciclos de investigação-ação.
Damos valor à comunidade educativa em rede (colegas, pais, autarquias). Valorizamos a liberdade para organizar os tempos de ensino de acordo com razões pedagógicas (aprendizagem) e para diferenciar. Consideramos que se queremos que os alunos sejam autónomos e bons comunicadores temos que lhes ensinar isso, não chega dizer “tens que ser autónomo!”. Criamos o hábito de refletir para ajustar ou mudar, realizando, se necessário, plenários de escola para o efeito; infletindo o nosso percurso e atitude (mudar de uma perspetiva excludente para uma perspetiva formativa de avaliação das aprendizagens, por exemplo); descobrindo formas de relação com crianças em NEE (partir delas para aceder a elas); tomando decisões (marco trabalhos de casa? Porquê?); confirmando, contra ventos e marés, contra velhos do Restelo, que a teoria se espelha efetivamente na prática quando estamos capazes de a ver.
A partir do final da primeira década do novo milénio, muito do nosso entusiasmo começou a ser amolgado. Tínhamos já cerca de 30 anos de serviço e à volta de 50 anos. A década de 1990 tinha sido o coroar de um percurso empenhado e o esboço bastante perfeito da possibilidade de uma outra escola e de outra profissionalidade. As alterações políticas (o encerramento de estruturas regionais de governação) e consequente aumento da carga burocrática, a intensificação do trabalho e a falta de autonomia tiraram-nos tempo e autoria, gerando desvalorização material e simbólica da profissão. A gramática da vida nas escolas altera-se efetivamente. Os procedimentos são outros e a possibilidade de expansão pessoal foi confiscada por parâmetros de desempenho, papéis a preencher ou plataformas onde registar. De repente, é como se nos dissessem que fizemos tudo errado. Mas, antes pelo contrário, fizemos tudo certo!

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